sábado, 31 de março de 2012

FORMA E CONTEÚDO - II -





Usei, precisamente, um soneto para esgrimir argumentos sobre a relação entre forma e conteúdo.
Haverá forma literária e paradigmática mais rígida do que aquela que preside à construção de um soneto …?
Segundo o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, soneto ou composição poética formada de dois quartetos e de dois tercetos.
Ou ainda, na sua estrutura e segundo a Wikipédia:
O soneto pode ser apresentado em três formas de distribuição dos versos:
Soneto italiano ou petrarquiano: apresenta duas estrofes de quatro versos (quartetos) e duas de três versos (tercetos);
Soneto inglês ou shakespeariano: três quartetos e um dístico;
Soneto monostrófico: apresenta uma única estrofe de 14 versos.
Depois, ele há as variáveis da rima, do ritmo e da métrica, em si mesmas musicalidade e matemática, conteúdos que lhe estão implicitamente escondidos …
Forma tão antiga de composição poética quanto remonta ao século XIII e que chamei, aqui, à colação!
Aqui, num simples soneto onde, obedecendo a uma rígida estrutura formal a instilo de conteúdo e, exatamente, para falar da relação entre forma e conteúdo, tão velhas reflexão e polémica a preencherem páginas e páginas sem fim, forma e conteúdo que o são indissociáveis do soneto.
Ou melhor, onde, precisamente por, na sua construção, ter de obedecer a tão estritos cânones formais estes e talvez por isso mesmo se preenchem de conteúdo!
Forma e conteúdo.
Tenho, invariavelmente, a sensação de que é aí que reside a criatividade:
Aí, no cumprimento de estritas regras formais ou para dizê-lo de outra maneira, no cumprimento de rígidos constrangimentos ou suor que nos possam condicionar e, logo, desafiar ou fazer inspirar, respirar também.
Naquela pequena margem que pesem as estritas regras a que não podemos fugir, repito, sempre existe!
Aliás, que maior rigidez do que aquela que da palavra não nos deixa fugir?
Palavra, como ela se escreve na composição, na sua relação com todas as outras?
Simbologia sem a qual não criaríamos fosse num simples soneto ou de qualquer outra forma?
Palavra.
Logo na palavra a forma e o conteúdo!
Na palavra …



Na palavra e nos seus traços encontrava
o que crio para lá do que lá estava
nela vejo de sobejo o que não via
quando a escrevo e quando a penso porque a lia
Nos meus versos ou na prosa que ela cria
neles sinto o que lá cabe e a maresia
todo o mar nas marés que cavalgava
mais ainda o universo que cantava
Na palavra cabe a forma que a moldava
cabe tudo e o oceano que a banhava
sem o qual nem ao sal o soletrava
Sem o qual nem às partículas sentia
nem tão pouco à vontade a soerguia
que a preenche quer de noite e quer de dia



no traçado de uma palavra, o conteúdo






Jaime Latino Ferreira
Estoril, 31 de Março de 2012

quinta-feira, 29 de março de 2012

FORMA E CONTEÚDO - I -

Jean-Francois Millet, Gust of Wind



Posso não ter no formalismo
de um soneto mais nada mas eu cismo
se aquela construção na forma tem
saber ou conteúdo que provém 

Daquilo que cantado por alguém
e muitos outros desdobrado em cem
limado e apurado em aforismo
à forma a põe à prova em grande sismo

A forma é o que resiste a um cataclismo
a um vendaval que a molda e pese a quem
a tenha por supérflua com desdém 

A forma à superfície em si contém
seus sábios alicerces qual catecismo
sem cujos contrafortes não sofismo


a forma é o contorno do conteúdo
 



Jaime Latino Ferreira
Estoril, 29 de Março de 2012

terça-feira, 27 de março de 2012

RASGO




Rasgo o horizonte na palavra
é ela a ferramenta desta lavra
por mais que secos estejam os meus lábios
não morrem seus impulsos nem os sábios 

Conselhos que me dão os astrolábios
dos astros que me auguram bons presságios
minha palavra é eco e não me entrava
nos sulcos que desenha e que assim cava

Minha palavra indica que são estágios
as cadências aqui por ela iluminadas
para lá das aparências socavadas 

Palavra como vulcão expele a lava
fecunda a terra ingrata e cala otários
aos velhos do Restelo e seus adágios



para lá do que se diz






Jaime Latino Ferreira
Estoril, 27 de Março de 2012

domingo, 25 de março de 2012

ÁGUAS TURVAS





Abro o meu caderninho inseparável, de bolso e quadriculado, uma pauta pluridimensional.
Novinho em folha!
Acabei de concluir o anterior.
Já se contam por muitos estes meus amigos inseparáveis e que, normalmente, quando saio guardo no bolso do meu colete, junto ao coração.
Que irei neste novo caderninho escrever?
Invariavelmente é nele ou no Word que me apoio, ora para dar o pontapé de saída ou para anotar um qualquer pormenor da minha próxima página ou para compô-la até à sua versão definitiva.
Quebro, agora também, a soneto mania que se instala, entranha quando dela me aproprio.
E o texto arranca.
Toma balanço de madrugada e no café em frente, à porta da Escola onde dou aulas, fazendo horas.

Quadrícula.
A quadrícula é uma folha em branco, uma pauta de linhas, uma pauta matemática ou de geometria descritiva, o suporte de uma pauta musical, um orientador no espaço e no tempo … o que eu quiser.
Nela escrevo como em nenhuma outra;
Registo um formulário;
Faço uma tabela;
Componho uma pauta musical;
Desenho se for caso disso.
Num torvelinho mas ordenadamente rabisco, rabisco e rabisco.
Quadrícula:
Grelha que condiciona e liberta!

( pelo meio, ainda da sua métrica, matriz entranhado, um novo soneto se intrometeu )
 
E, no entanto …
No entanto, no meio das águas turvas em que nos parecemos mover e por paradoxal que para muitos e em crescente número possa parecer, persisto em afirmar aos sete ventos que é em sede do poder democrático, representativo que reside o gene da abertura.
Do aprofundamento e, logo, da consolidação da Democracia.
Da recuperação da desejada confiança tão em tamanho défice …
Na disponibilidade que ao um, ao singular, ao cidadão comum, nas malhas, grades, prisão da sua afirmativa resiliência o venha a reconhecer!
Esta, a minha como sagração de uma primavera que tarda.






Jaime Latino Ferreira
Estoril, 25 de Março de 2012
 
quadrícula deste meu chão, fotografia de mb

sábado, 24 de março de 2012

EROSÃO




Atitude é um não querer que a erosão
desgaste o que sobra e que de tão
sublime no olhar resiste e sempre mais
longe quer ver para lá dos tais 

Empecilhos que te impedem ao que vais
no teu para lá do mar que aporta ao cais
a esta minha praia ilusão
vontade e horizonte e sagração 

Erosão tu não és mais do que um senão
a querer-me pôr à prova como sais
que de água nas encostas aos umbrais 
corroem e desbaratam quando cais

Quando te levanto e deste pão
te o dou por alimento do meu chão


 

resistindo à erosão, vontade a minha







Jaime Latino Ferreira
Estoril, 24 de Março de 2012

quinta-feira, 22 de março de 2012

ESCALA





Subi lance de escadas e de lá vi
o que gostei de ver porque sorri
do seu alto o mundo pesem os maus
momentos que esqueci de imenso caos 

Difere a perspetiva nos degraus
cromáticos que são vistos de outros graus
conforme a suba ou desça aquilo que ri
resvala quando vai do dó para o si

Ou quando do mi para o fá meios-tons senti
qual súplica de uma escala que por fim
se rende a uma simples conclusão 

Escala é uma escada e nos seus vãos
não encontro o tom para os teus nãos
quer suba ou quer a desça oiço um sim


 

a música não diz não






Jaime Latino Ferreira
Estoril, 22 de Março de 2012

terça-feira, 20 de março de 2012

FICÇÃO




A minha ficção é a realidade e as estreitas margens de liberdade criativa de interpretação do real que a mim dela me separam faz toda a diferença.
Separam ou complementam?
Distinguem.
Vejo as coisas pelo meu ângulo como não poderia deixar de ser …!
Como qualquer um as vê para lá dos dados disponíveis e que não são independentes dessa mesma realidade.
Como o não sou eu também.
Não existe uma realidade absoluta como também não existe uma verdade absoluta e inquestionável a não ser na esfera íntima das crenças ou descrenças singulares.
Mas a essa esfera não a posso nem quero impor a quem seja!

A minha ficção pauta-se pela realidade concreta a começar pelo meu contexto e nela não cabem personagens fictícios e logo a começar pela pseudonímia de mim mesmo.
Sou eu, eu próprio no meu avatar, no meu nome e em todos os meus dados que de mim mesmo Vos disponibilizo.
Eu na interpretação de mim mesmo!
Tal como me vejo diante do que, do que se passa, eu vejo.
Identidade sempre avalisada pela assinatura e data que aos meus textos os subscrevem.
No imparável fluxo dos acontecimentos.
Ontem como hoje e sempre.

A minha ficção pauta-se por estreitas margens de interpretação.
O que acontece a meus olhos e que não sãos os teus nem os de ninguém mais.
Vejo como vejo o fluir da História tal como tu ou qualquer um de outra maneira o veem, ângulos ímpares e singulares que todos somos.
Nem de outra maneira o poderia ser:
Basta que nos situemos diferentes e em espaços próprios nunca coincidentes.
Podes tu ocupar, em simultâneo, o espaço que eu ocupo?
És tu, qualquer um que o sejas, igual, exatamente igual a mim mesmo?

A minha ficção, tão estreitas que são as margens que ela ocupa, acrescenta ou diminui?
Valoriza ou desvaloriza?
Anula ou somatiza?
Exclui ou inclui?

A minha ficção, tão estreitas que são as margens que a definem, fecha ou abre horizontes?
Estreitas margens …
Nas estreitas margens que a circunscrevem, a minha ficção transforma-se, porém, num rio imenso!
E tal acontece precisamente por ter tão circunscritas, delimitadas as suas margens.
E a essa capacidade de ficcionar, como num soneto que tem de obedecer a regras rígidas e formais inultrapassáveis, chama-se, tão só, criatividade.

A minha ficção da música tem a respiração que nas suas estreitas margens, para o melhor como para o pior, num gesto vê mais do que um gesto, uma lua oxigenada, molhada, alegre ou triste, chorosa e suplicante vista do meu enfoque.

A minha ficção é, tão só, capacidade Política dentro de um quadro estrito e democrático!




se, por mérito próprio e resolutamente, ao positivo se valorizasse, ao que de pior, muito pior há, mais efetiva e contundentemente se conteria








Jaime Latino Ferreira
Estoril, 20 de Março de 2012

domingo, 18 de março de 2012

ACRIMÓNIA VERSUS ABERTURA




Comecei por não encontrar antónimo à altura de acrimónia que não este que eu próprio inferi …
Se acrimónia é sinonímia de acidez, de corrosão, de azedume ou de fechamento que estes sempre induzem, pois então, que melhor antonímia para ela senão abertura!?
A acrimónia releva de uma atitude ressabiada que em cada um de nós poderá, eventualmente, aflorar.
Todos somos por ela atingidos.
É normal, digamos que faz parte da nossa condição tal como dela fazem parte a inveja ou o ciúme.
Fazer ela parte da nossa condição é, porém, uma coisa, deixarmo-nos por ela tomar é outra de gravidade sempre acrescida.
A acrimónia não escolhe estatutos nem géneros e a todos, por igual, pode afetar.
Uma atitude acrimoniosa vira-se, irremediavelmente, contra quem, pública ou privadamente, a desenvolve e pratica.
É uma atitude corrosiva, repito, que leva ao fechamento sobre si próprio.
Que leva à anulação dos outros e a uma sobrevalorização ainda que desvalorizada de si mesmo.
A acrimónia, em si mesma, conduz ao contrário de abertura.
Embora situadas nos antípodas, acrimónia tal como abertura não têm nada de ideológico …
Por melhor que seja a consideração em que me tenho, a autoestima como soe dizer-se, não guardando rancor, eu não me fecho sobre mim mesmo.
E pesem como poderiam pesar todas as razões para que assim procedesse.
Não só não me fecho sobre mim mesmo como faço por manter abertas todas as portas que abri.
E como as poderia ter, abruptamente, fechado já …!
Aflora, aqui, alguma acrimónia que, no entanto, rapidamente enxoto de mim.
Porquê?
Porque se dela me deixasse tomar, em vez de congregar dividiria e aí sim, a tudo o que vou escrevendo deitaria a perder!
Ao contrário da acrimónia, a abertura, instilada de afabilidade, é profundamente democrática e, ela também, não escolhe géneros nem estatutos.
A abertura, contrário de autocomiseração a que a própria acrimónia conduz, se não anula congrega mesmo e tanto mais quanto os difíceis tempos em que vivemos e que dela carecem como antídoto da amargura!
Ao contrário da afabilidade mas num patamar de registo contabilizável embora dificilmente traduzível em números, a acrimónia gera desconfiança.
À acrimónia pode-se sempre rechaçar de nós mesmos, mas como fazê-lo quando ela, desde um passado remoto, já compromete e faz definhar!?



de como o que se diz e tanto mais se escreve contra nós mesmos se vira e ao virar-se não ajuda ninguém






Jaime Latino Ferreira
Estoril, 18 de Março de 2012

sábado, 17 de março de 2012

O MEU SONETO - II -




O meu soneto empurra-me e ao preto
noutras mais cores o expande e de concreto
à vista não a deixa escurecer
em luz que aqui teima em renascer

Num fio de som sublima o meu querer
o teu e o nosso futuro e o alvorecer
não se deixa esmagar só porque o teto
se abate num longo preito por completo

O meu soneto é margem deste feito
é meu respirar que sai do peito
oxigenado cantar do verbo ser 

Prova de vida que se obstina em ler
a vontade que tenho de o erguer
pese o que parece ter-se desfeito








 
Jaime Latino Ferreira
Estoril, 17 de Março de 2012

quinta-feira, 15 de março de 2012

CEGO, SURDO E MUDO - I -




Escrevo este soneto surdo e mudo
cego ao que me chega e não é tudo
preso ao que a cantar num dedilhar
vos trago para lá de um triste olhar

Se vê aquilo que canto é um radar
que vê mais do que vejo por pensar
nas ondas deste mar encapelado
que a todos nos atingem lado a lado

Se ouve o que não ouve quero e mudo
aqui neste lugar sem ter lugar
as coordenadas rígidas deste fado

Se canta não se ouve mas ao teu fardo
mais leve o quer tornar quer sejas surdo
ou mudo ou cego inspira-me o meu estar


 

aos que da ausência destes sentidos padecem
e numa paralisia anestésica


 
escrito ontem de madrugada sem outra música que não esta


 

Jaime Latino Ferreira
Estoril, 15 de Março de 2012

terça-feira, 13 de março de 2012

QUANDO COMEÇO A ESCREVER




Muitas vezes, tal como agora, quando começo a escrever não sei como o texto evoluirá e, muito menos, como se concluirá.
Inicio, assim, uma viagem com destino incerto.
Interrogo-me, então, se valerá a pena prossegui-la.
É, no entanto, sempre mais forte o impulso afirmativo que me sussurra que sim, que basta, então, seguir o murmúrio que me acompanha e ir deixando-o, paulatinamente, aqui registado até que este se extinga num texto que acabará por fazer todo o sentido.
Fá-lo-á apenas para mim?
O sussurro vai e vem …
Por vezes, o sussurrante murmúrio deixa de se fazer ouvir e, nessas alturas, não há como não força-lo.
Interrompo, assim, a minha escrita e passo a outra coisa qualquer, sempre na esperança de que o seu fluxo retome o seu curso o que, amiúde, acaba por acontecer.
Outras vezes, volto atrás e releio tudo o que até então escrevi e, tomado desse balanço, o que parecia ter-se extinguido, brota de novo em retemperado impulso.
Se passo a outra coisa qualquer, não é menos verdade que ele se fará, mais cedo ou mais tarde, de novo ouvir.
Também pode acontecer que fique com a sensação de estar a chover no molhado.
Como agora, neste preciso momento …
Nessas alturas dá-me vontade de apagar tudo o que até aqui escrevi mas resisto sempre, quase sempre a essa tentação.
Contam-se, provavelmente, pelos dedos de uma só mão as vezes em que a vontade de apagar, ao longo dos anos, terá prevalecido!
Há sempre qualquer coisa que me diz que aquilo que escrevi, escrito está, faz parte do meu percurso e que não dá para apagá-lo.
Para eliminá-lo de mim mesmo …
Como se, se o fizesse, na folha que se desdobra, à minha sombra a estivesse, qual memória do que sou, a apagar também!
E continuo, invariavelmente, a escrever.
Como se a escrita fosse parte de mim mesmo, um irrecusável e complementar, silencioso e musical prolongamento para lá das dobras que me compõem.
Quando começo a escrever pressinto que chegarei a bom porto e quando, finalmente, o vislumbro dou graças de não ter arrepiado caminho.
Dou graças de não ter apagado de mim o que, por fim, se vislumbra e sem o que, a este texto, outros não se lhe seguiriam, pelo menos nesta sequência, ato após ato quais quadros da minha vida e ainda que, aparentemente, possa parecer que sobre nada Vos tenha escrito!
No momento que transcorre, que seria de mim sem esta fiel e colada sombra que sempre me acompanha?
Num ato de resistência forço e forço o traço uma e outra vez mais ainda …
Sempre!



sob o espectro das ruínas que nos cercam






Jaime Latino Ferreira
Estoril, 13 de Março de 2012