segunda-feira, 23 de julho de 2012

PALAVRA E MÚSICA

Kevin Sloan, The Listener




Em sentido estrito.
Em sentido estrito ou musical propriamente dito, a palavra é melódica, não no sentido de melodia propriamente dita embora também o possa ser, isto é, constrói-se na horizontal, som após som, suporta apenas uma voz ou fonema de cada vez.
Tal como os instrumentos musicais melódicos como a própria voz humana o é.
Neste mesmo sentido a música é harmónica, não no sentido da agradabilidade sonora propriamente dita, isto é, constrói-se simultaneamente na horizontal como na vertical, som sobre som e após som, suporta em si mesma várias vozes em simultâneo, isto é, é polifónica.
Tal como os instrumentos harmónicos como, entre todos, o piano se destaca.
Não se podem dizer como escrever várias coisas ao mesmo tempo, elas têm de o ser ditas ou escritas umas após as outras.
Basta olhar para um texto corrido como este o é:
Sempre na horizontal, palavra após palavra até à conclusão de um período e período após período até à sua composição final.
Musicalmente falando não se pode ir, pela palavra, mais longe do que o arpejo.
Pode-se, no entanto, escrever e sobretudo tocar música dizendo muitas coisas ao mesmo tempo:
O que cada naipe deve tocar em simultâneo, instrumentos e vozes ou pura e simplesmente tocar um acorde num instrumento harmónico ou em vários melódicos ao mesmo tempo, isto é, tocando cada qual a sua nota.
O arpejo que é uma escadinha de notas tocadas em sequência umas após as outras, só quando finaliza podemos dele abarcar uma perceção qual ela seja.
O acorde, instantaneamente, fornece-nos essa perceção.
Em sentido estrito, daqui não se pode sair:
A música, para lá da sua universalidade, tem um poder de síntese que a palavra só no correr do tempo nos é capaz de fornecer.

Em sentido amplo.
Em sentido amplo, porém, as coisas não são bem assim.
Uma vogal tal como uma consoante transporta consigo a sua história e essa é feita de sucessivas camadas, harmónicos que se sobrepõem, na vertical, uns aos outros.
E que dizer, então, de uma palavra?
Ou de uma frase ou, mais ainda, de um texto completo?
Quantos conteúdos mais ou menos escondidos, nas suas entrelinhas, sob ou sub vozes, na vertical, harmónicas, delas, das palavras não se depreendem?
E mais ou menos em simultâneo?
Sim, porque o pensar que a um texto o interpreta é harmónico, ele também e não faz cerimónia qual seja de pontuações ou ideias que dele fluam e/ou o potenciem.
Melhor diria ainda, o pensar é um harmónio, um fluxo de vento que impulsionado por um fole, em palavras e emoções que delas se desencadeiam, em todas as direções, ultrapassando a velocidade da luz, se despoleta e conjuga.
Tudo depende da riqueza intrínseca de um texto tal como a intensidade emocional, estética de um trecho musical, da sua riqueza intrínseca também depende.
Saber escrever, ler e saber ouvir.
Se sei ouvir oiço para lá daquilo que oiço tal como se sei escrever ou ler, escrevo e leio, vejo para lá daquilo que vejo.
Vejo ou que escrevo ou que leio.
Depois há a entoação e a intensidade.
Eis duas virtudes intrinsecamente musicais que, escondidas, à palavra de acrescida semântica, em acorde, elas também, lhe dão o seu cromatismo.
E que o ouvinte atento, dele se apercebendo, musicalmente interpreta.
Com o coração, a boca, por atos e na vida, na sua lenta e progressiva maturação, a palavra tal como a música tão musical quanto esta o é.
A ambas basta que se lhes dê o tempo necessário de maturação, a capacidade de ouvir, isto é, de sentir e de interpretar.


nesta e na minha outra frente, música e palavra correm melódicas e harmónicas


 

Jaime Latino Ferreira
Estoril, 23 de Julho de 2012



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